Programadores e depressão

Paulo Pilotti Duarte
11 min readAug 12, 2014

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Comecei a minha vida de programador em 2006, oito anos atrás. Nesse tempo tive empregos bons e ruins e convivi com muitas pessoas, dos mais variados níveis sociais e econômicos. Convivi com muita gente que era brilhante e muitos outros que não sabiam que eram brilhantes. Mas com o que eu mais convivi durante todo esse tempo foram pessoas com depressão (e muitas que sequer sabiam/sabem disso). Sendo eu mesmo uma delas.

Voltarei nesse assunto em breve.

Meses atrás eu me deparei com a palestra do programador Greg Baugues onde ele fala como ele passou pela depressão — ele foi diagnosticado com transtorno bipolar tipo II — e como ele tenta, hoje, ajudar os outros programadores a conviver com essa doença, através da experiência dele com a profissão e com a doença, e faz isso contando a história dele.

Vou tentar fazer o mesmo, ainda que eu não tenha a capacidade oratória dele — e nem a chance de falar sobre isso para mais pessoas — e provavelmente não tenho a capacidade de enxergar o “todo” de maneira tão boa quanto ele, mas, eu passei por algumas coisas que são parecidas com o que ele passou.

Primeiro, vim de uma família pobre, muito pobre, com meu pai lutando dia após dia contra a dificuldade econômica da família e tentando me colocar onde ele achava que seria o melhor lugar. E assim eu passei a infância e a pré-adolescência, vendo o esforço do meu pai e da minha mãe (não) sendo recompensado financeiramente, e sempre tive como base de toda a minha criação do trabalho, apenas isso. Meu pai programador e minha mãe professora, nenhum dos dois capaz de ter uma vida típica de classe média, e muito menos, me dar essa vida. Porque isso é importante? Porque isso influenciou a minha a visão posterior do que seria bom e/ou ruim na formação do meu caráter.

Tentei — para deixar a minha mãe feliz — entrar em Medicina na universidade federal por duas vezes. Falhei. Não era o que eu queria e, desde essa época, eu não conseguia colocar esforço em algo que eu não entendia e não queria. Eu não conseguia deixar de pensar na inutilidade do meu esforço. Depois da segunda tentativa eu me decidi, após a separação dos meus pais, que seria a hora de eu correr atrás de algo que eu quisesse mesmo. Computação era a primeira escolha, mas, novamente, o fracasso. Depois disso eu percebi que não tinha mais como gastar o dinheiro deles em tentativas frustradas e decidi tentar um curso mais fácil, onde eu tivesse reais chances de entrar. O ano já era 2003, faziam 4 anos que eu tinha terminado o segundo grau e eu estava sem fazer nada, absolutamente nada, e nesse contexto, a Matemática acabou sendo a saída covarde do meu primeiro atrito comigo mesmo. Passei e perdi quatro anos da minha vida num ambiente que não me era bom. Eu tinha momento de plena satisfação, alternados com momento de completa depressão, onde a morte era a saída que me vinha na cabeça. Todo o dia a sensação de estar “pesado” demais para que a minha família me levasse me destruía por dentro. Cada ajuda financeira da minha mãe. Cada vez que eu tinha que olhar ela nos olhos. Cada vez que meu pai me perguntava como as coisas estavam e se eu precisava de alguma ajuda dele. Cada uma dessas interações sociais me matavam um pouco mais por dentro e me distanciavam do que eu queria. Eu me destruí completamente nesses quatro anos. Acabei com a minha felicidade e com a minha capacidade de sentir algo. Nada me fazia querer estar no mundo, nada me criava reação alguma. Eu me sentia oco e vazio. Eu não queria ir a lugar algum, não queria sair de casa e me escondia de tudo e todos. Eu queria apenas deitar, dormir 18h por dia e, com sorte, não acordar no outro dia e assim nunca mais ter de enfrentar a vida. Era a minha incapacidade de me relacionar que me deixava assim.

O Aaron Swartz escreveu sobre isso, ainda em 2007, e ele resume de forma muito inteligente e clara o sentimento de que nada traz felicidade — ou mesmo qualquer emoção — quando se está nesse estado de torpor depressivo.

You feel worthless. You wonder whether it’s worth going on. Everything you think about seems bleak — the things you’ve done, the things you hope to do, the people around you. You want to lie in bed and keep the lights off. Depressed mood is like that, only it doesn’t come for any reason and it doesn’t go for any either. Go outside and get some fresh air or cuddle with a loved one and you don’t feel any better, only more upset at being unable to feel the joy that everyone else seems to feel. Everything gets colored by the sadness. (Sick, Aaron Swartz)

Em 2006, como eu disse no primeiro parágrafo, eu comecei a minha carreira como programador. Consegui um emprego de estágio numa grande empresa de software de Porto Alegre e comecei a ganhar meu próprio dinheiro. Meu pai não era mais a minha fonte de renda e eu era capaz de comprar algumas coisas que eu queria. E por alguns meses isso foi ótimo. Minha vida era ótima. Eu tinha, finalmente, encontrado um monte de pessoas como eu, que se sentiam isoladas como eu. E mais do que isso, eu finalmente tinha chegado em uma empresa onde eu podia chegar as 5 da tarde e sair as 11 da noite, sem problema nenhum. Eu dormia até o meio-dia e ainda tinha muito tempo até a hora de entrar no emprego. Era o sonho. Por cinco meses. Depois de cinco meses tudo voltou ao "normal", tudo era como antes. Eu não queria mais ir trabalhar e acabava ficando em casa o dia todo, Faltei muitas vezes, dando desculpas esfarrapadas para não ir. Ia no outro dia, não fazia nada e saía de lá escondido do meu gerente, sem saber como encarar ele. Acabei pensando que o problema era o que eu fazia e pedi demissão. Aquela não era a empresa que eu deveria trabalhar. Meu novo sonho era uma empresa multinacional, grande mesmo, que me fizesse sair do país e trabalhar em um projeto grande, com pressão e prazo. Era assim que eu via meu pai trabalhar, era assim que deveria ser.

Fiquei quase 2 anos sem trabalhar, pulando aqui e ali, sem saber onde ir e o que fazer. Me sentia um merda total e resolvi que era hora de sair de lá, da Matemática, porque na busca por soluções malucas pro meu problema, eu acreditei que o grande problema era o fato de que eu não estava no curso certo e que, quando eu estivesse, eu iria mudar e tudo iria retonar aos eixos. Como foi em cinco meses da minha vida. Perdi 4 anos porque não conseguia ir a nenhuma aula, não estudava e passava a maior parte do tempo matando aula com mais 3 amigos nos bares da faculdade, gastando um parco dinheiro que ganhava como monitor das cadeiras introdutórias do curso de computação.

Na hora de trocar de curso, pensei "HEY … eu sempre gostei de Física". E assim Física foi o meu segundo curso na universidade. Entrei sem esforço, o curso é fácil de entrar e terrivelmente díficil de sair. Nunca saí de lá formado ou sequer perto disso.

Em 2007 comecei o novo curso e já no outro ano, 2008, consegui meu emprego tão sonhado numa multinacional. Num grande projeto — o maior da empresa aqui em Porto Alegre — e … fracassei mais uma vez. Durante três ou quatro meses eu fui exemplar: chegava cedo, saísa tarde, fazia meu trabalho do melhor modo possível e resolvia tudo. Hiperfoco é o nome disso. É aquele sentimento comum aos programadores que ocorre quando começamos uma projeto novo e não conseguimos dormir, transar ou comer direito, nosso único foco é no projeto novo. Nada mais importa. Isso é danoso e não escala, não podemos passar a vida toda assim. Não podemos e não conseguimos, aliás, não conseguimos passar nem uns poucos meses. Esse emprego, antes dos sonhos, se tornou um grande pesadelo e, com o prazo de validade de mais um emprego vencido, eu pedi demissão. Era o que me restava, afinal eu não conseguia, novamente, sequer ir pro trabalho ou fazer alguma coisa. Junto disso, desse turbilhão, uma separação traumática de uma relação traumática que, ainda que tenha sido conturbada, me ensinou muito. Junte tudo isso e chegamos na minha segunda crise. Amigos me ligavam, me convidavam pra sair (quando conseguiam falar comigo, na maior parte do tempo eu me escondia deles) e tentavam, de um modo atrapalhado mas honesto, me tirar daquela "fossa de 12 metros" em que eu estava. Nada adiantou, até porque não era ali que estava o problema, minha fossa era o sintoma de uma doença muito maior.

Tendo em mente a minha criação e todo o trabalho que meus pais passavam comigo, eu me sentia ainda mais inútil, ao mesmo tempo não conseguia forças para sair dali e também tinha vergonha de pedir ajuda para eles ou de pedir ajuda médica. Não conseguia ser produtivo, não tinha esperança e não tinha coragem de encarar a minha doença. A solução foi procurar outro emprego, tentar sair dali do mesmo modo que eu tinha entrado, como se um emprego, uma ocupação pra mente, fosse a resolução pra esse tipo de problema. Comecei a procurar emprego e acabei sendo contratado em outra empresa multinacional de software. Novamente, a euforia, era a terceira vez que isso acontecia, mas, eu sempre dizia a mim mesmo que dessa vez seria a vez certa e que tudo o que eu precisava era disso, desse novo emprego, desse gás na minha vida. E por mais três meses foi isso que aconteceu. Os mesmos sintomas de antes (euforia, hiperfoco, concentração máxima no trabalho, etc) estavam lá comigo novamente. E eu era, depois de três meses, jogado na lama novamente. Ainda fiquei mais três meses trabalhando como um zumbi, ia três dias e faltava dois (fingia que trabalhava de casa). Quando ia, almoçava sozinho e me escondia no banheiro da empresa, esperando que ninguém me visse lá e que a minha hora chegasse de uma vez. Vagava solitário pela empresa, pelo pátio da empresa e pelos corredores da universidade, sem saber direito o que fazer e sem saber como me comportar e como dar a notícia para todos: eu queria sair de lá de novo.

Dessa vez era um pouco diferente, eu realmente não queria estar mais lá, como anteriormente, mas agora eu não tinha mais nenhuma vontade de fazer nada, só queria mesmo não ir pra lá e me deitar, ver o mundo passar devagar pelos meus olhos e, quem sabe, não acordar mais. Novamente o sentimento de estar completamente inútil e de não valer a pena era constante. Acabei saindo da empresa, do mesmo modo que tinha saído das outras duas. Pedi demissão de três empregos e, se não tivesse entendido o problema, estaria fazendo isso ainda hoje. Precisei de um bom tempo sozinho, pensando, pra entender que eu não estava fazendo o que eu queria e que eu precisava sair dali, me desligar um pouco e me conhecer. Entender o que eu tinha de errado e o que eu estava fazendo errado com a minha vida. O grande problema era que sozinho eu nunca iria conseguir fazer isso.

O meu primeiro passo foi bom, tirei de mim o peso de fazer um curso que eu nunca gostei, passei para um curso de humanas, Letras, e comecei a me sentir mais produtivo. Fazer novas descobertas de coisas que eu podia fazer. Durante dois anos eu vivi o que eu achava que seria a minha cura. Trabalhava e ganhava o bastante para fazer o que eu queria. Eu estava no topo da minha fase eufórica, a mais longa em anos, e que foi interrompido por uma separação muito mais traumática do que a anterior e que me jogou no fundo do poço. Em todos esses anos eu sempre pensei na possibilidade de ir procurar uma terapeuta, mas, essa foi a primeira vez que eu vi que não tinha como manter a minha vida sem ajuda profissional. E, finalmente, procurei por ajuda. Fui atrás do que poderia ser a minha a única chance. Comecei a tomar antidepressivos e fazer terapia uma vez por semana. Aos poucos, durante meses, eu fui percebendo que meus problemas tinham várias raízes mas, o maior de todos, era o fato de que eu era doente e precisava encarar a minha vida com isso, essa seria a minha condição daqui em diante.

Hoje, um ano depois disso começar, eu consigo perceber a mudança de comportamento que eu tive com todos os que eu conheço e que convivem comigo diariamente. Com amigos antigos e novos. Com todo o tipo de pessoa. Até mesmo a minha relação profissional melhorou muito eu consigo entender que o problema não está nessa ou naquela empresa; nesse ou naquele emprego; está sim em mim, eu carrego essa condição, essa doença e ela quem me faz ser assim. Eu não posso me descuidar disso jamais.

Como eu prometi, retomo o primeiro parágrafo: em todos esses anos trabalhando como programador, eu me deparei com muitas pessoas que eram assim como eu, que estavam numa profunda depressão, numa tristeza crônica, mas que conseguiam seguir as suas vidas — fosse por qual motivo fosse, desde o medo de sair de um emprego estável até a família que precisa ser alimentada — e que se escondiam com vergonha do que estava acontecendo. Como todo mundo sabe, e que até faz parte do estereótipo do programador, nenhuma profissão é tão atraente para quem tem esse tipo de problema como a de programador. Podemos trabalhar durante a madrugada, sozinhos e isolados, sem que ninguém nos incomode, e usamos isso, quase sempre, como bengala para esconder, de nós mesmos inclusive, o que, muitas vezes, não queremos encarar de frente.

Procurei por links com informações sobre a depressão e os programadores aqui do Brasil e não encontrei nenhum (os links em inglês estarão no final) o que nos mostra que talvez o problema ainda não tenha sido notado aqui — o que pode ter muitos fatores externos e internos, mas, que eu chuto, se dá principalmente pela mentalidade industrial que as empresas tem aqui no Brasil, sejam nacionais ou não, mas isso é outro assunto. Mas a ajuda existe, eu consegui e hoje convivo muito bem com tudo o que me aconteceu. Ainda tenho muitos problemas na vida e ainda colho muitos frutos da minha irresponsabilidade naqueles anos atrás, o que me faz ter 31 anos (quase 32) e estar no início da vida profissional e pessoal.

Escrevi esse texto com o único intuito de tentar mostrar para qualquer pessoa que um dia leia-o que existem muitas pessoas na mesma situação, muitas pessoas que já passaram por isso e que pedir ajuda é melhor saída para esse problema. Qualquer um que leia isso e se reconheça em alguma dessas experiências deveria considerar procurar ajuda médica. Assim como qualquer um que leia e que conheça alguém que se encaixe em algo do que eu narrei aqui.

Hoje eu tenho a consciência disso e todo o dia quando lavo o meu rosto no banheiro eu sei que eu tenho uma doença e não posso me dar ao luxo de baixar a minha guarda pra ela. Qualquer descuido me fará cair novamente no abismo escuro que eu vivi durante todos esses anos. A terapia e a medicação me ajudam muito e são essenciais para que eu consiga me manter de bem. E eu sei que provavelmente eu terei de manter a minha dedicação e vigilância pro resto da vida.

Isso faz parte de mim agora.

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