Minha dor é perceber …
Em primeiro lugar, há o cinismo do texto em si (algo recorrente na publicidade, infelizmente): usando a linda canção de Belchior, “Como Nossos Pais”, como fio estrutural do filme, o comercial basicamente ignora aqui e inverte ali as intenções originais do compositor ao recontextualizar a letra através das imagens que a ilustram e ao remover os versos que a situavam historicamente. Escrita em 1976, durante a ditadura militar (e cantada por Elis no mesmo ano), a música não oculta suas intenções como discurso ao dizer:
Por isso, cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram
E o sinal está fechado pra nós
Que somos jovensOu, logo depois:
Já faz tempo eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói maisNas estrofes de Belchior e na voz de Elis, há alerta e lamento, frustração e dor. Nada, portanto, que grite “compre um carro novo”. A publicidade é feita de alegria e otimismo; sentimentos negativos (ou de cautela) não são bons vendedores. Assim, ao apagar estas linhas a música é higienizada, despida de seus valores políticos e maquiada como um hino de continuidade, de ligação entre gerações.
Uma ligação feita, entre outras coisas, pelos carros da Volkswagen, evidentemente.
Assim, simulando a textura de registros antigos, com direito a artefatos na “película”, o comercial busca (e, creio, consegue) evocar nostalgia enquanto traz seus personagens divertindo-se na praia, cochilando, namorando, transando ou amamentando — dentro de seus carros, claro -, ancorando a experiência humana aos veículos da montadora, que extrai romantismo até de um veículo enguiçado que exige ser empurrado.
Para isso, porém, o filme inverte totalmente o que os artistas queriam dizer: se a música sugeria a frustração dos jovens com relação às gerações anteriores, que permitiram a corrosão social e política do país, e também quanto à própria incapacidade de alterar a História, no comercial a letra transforma tudo em uma continuidade romântica e bem-vinda; no final das contas, ele parece dizer, somos todos iguais, mas isto é algo positivo e doce. Ou ainda mais hipócrita: somos iguais, mas melhorados. Vivemos as mesmas experiências básicas, mas nos modernizando. Vejam como esta Kombi elétrica é linda.
Pablo Villaça
Referência: https://pablovillaca.substack.com/p/elis-regina-chaplin-e-o-mercado-das