A internet sempre foi um caos.

Uma previsão sobre o caos das redes sociais em tempos de alt-right,

Paulo Pilotti Duarte
5 min readJun 4, 2022

Prefácio

Em 1995 o professor Cliff Stoll escreveu que a internet não seria uma mar de rosas. Ele previu, de forma errada — catastroficamente errada — que não teria muita utilidade na internet com coisas mundanas como educação e compras. Ele estava muito errado nesse ponto, contudo, em todo o resto ele estava certo.

Sim, a internet mudou drásticamente o modo como trabalhamos, nos comunicamos, compramos e, principalmente, votamos. E a pandemia acelerou um processo de teletrabalho no mundo todo, mostrando que o modelo de escritório-chefe é fadado do fracasso — levando inclusive a um movimento de pedidos de demissão em massa nos EUA e até mesmo no Brasil — e forçando a maioria das empresas a acatar o novo modelo de trabalho de casa.

Mas não é sobre isso que o Cliff estava falando — bom era, mas não apenas sobre isso. Ele falou de ruído. De dados. De caos. E ele tinha base pra isso (quem não conhece a história dele, leia Cucko’s Egg e entenda como ele foi capaz de perseguir um espião pela internet das BBS’s dos anos 80) e usou esse conhecimento para prever o caos atual da internet.

Num primeiro momento, inclusive, ele foi ridicularizado — e fez um mea-culpa — por ter errado a parte e eCommerce. Atualmente, mais de 20 anos depois, o artigo está sendo revisitado como um prenúncio da era da internet murada, das notícias falsas e, principalmente, da ideia de que todo mundo está gritando e ninguém está escutando. O LA Times já falou sobre isso. A Wired já perfilou o professor depois disso. A coluna de 1995 ainda está online no site da Newsweek.

Claro que ele não fala exatamente sobre os movimentos da alt-right que se espalham pelo mundo e se fortalecem com base em algoritmos opacos de redes sociais controladas por empresas transnacionais ou de teorias da conspiração nascidas da cabeça dos channers — como QAnon ou a nova teoria que diz que Joe Biden está morto e uma série de atores, dentre eles Jim Carrey, se maquia e assume o lugar do POTUS — mais doidos possíveis. Mas a semente do caos do Facebook/Meta e das notícias de grupos de WhatsApp está lá quando ele fala que a internet é um enorme mar de dados não editados que carecem de curadoria, checagem e, principalmente, aferição de veracidade. Junte com isso o pior do jornalismo declaratório e temos, finalmente, o cenário atual da política mundial e de movimentos e como o trumpismo e o boslonarismo — para ficar apenas nos dois que eu mais conheço.

Concordando ou não, o artigo do professor Stoll vale a pena a leitura, seja no original no link acima ou na minha tradução — com bastante liberdade, diga-se — reproduzida abaixo.

Porque a web não vai ser um mar de rosas

Por Clifford Stoll

Após duas década, estou perplexo. Não é como se eu não tivesse experiências boas na internet. Conheci ótimas pessoas e até mesmo persegui um hacker ou dois. Mas hoje, estou incerto sobre o futuro da internet e da sua comunidade Alguns visionários enxergam um futuro no teletrabalho, bibliotecas interativas e salas de aula multimidia. Eles falam de cidades conectadas, reuniões e comunidades virtuais. Comércio e empresas irão mudar dos escritórios e shoppings para a internet. E a liberdade da internet fará o governo mais democrático.

Besteira. Será que os peritos computacionais carecem de bom senso? A verdade é que nenhum banco de dados online irá substituir o seu jornal diário, nenhum CD-ROM é capaz de tomar o lugar de um professor competente e nenhuma rede de computador irá mudar a forma como o governo trabalha.

Claro, considerando o mundo online atual. A Usenet, um quadro de aviso mundial, permite que qualquer pessoa poste mensagens. Suas palavras são postas pra fora, publicadas velozmente. Cada voz pode ser ouvid de forma barata e instantânea. O resultado? Cada voz é realmente ouvida. A cacofonia desse caos lembra muito as rádios cidadãs, complementadas por assédios e ameaças anônimas. Quando todo mundo grita, poucos escutam. E o que falar sobre a publicação eletrônica? Tente ler um livro em um computador. No máximo, é uma tarefa desagradável. A visão míope de um computador de tela brilhante que toma o lugar da amigável página de um livro de papel. E você nem pode levar esse laptop para a praia. Ainda assim, Nicholas Negropont, diretor do laboratório de Mídia do MIT prevê que em breve iremos comprar livros e jornais direto pela internet. Claro.

O que os mochos da internet não te dizem é que é um grande oceano de dados não-editados, sem nenhum senso de completude. Faltam editores, revisores, críticos; a internet é uma terra sem lei de dados sem filtro algum. Você não tem como saber o que ignorar e o que vale a pena ler. Logado na internet, eu caço por dados sobre a Batalha de Trafalgar. Milhões de arquivos aparecem na minha tela; levo mais de 15 minutos para destrinchá-los — um é uma biografia escrita por um estudante do oitavo ano, outro é um jogo de computador que não fnciona e o terceiro é uma imagem do monumento em Londres. Nenhum desses arquivos responde a minha questão e a minha busca é periodicamente interrompida por mensagens tais como “Estamos com muitas conexões; tente novamente mais tarde”.

Mas a internet não seria útil no governo? Viciados em internet clamam por relatórios governamentais. Mas quando Andy Spano concorreu poara deputado na cidade de Westchesterm, NY, ele colocou todos os seus comunicados em uma BBS. Num país de primeiro mundo, com milhares de computadores conectados, quando eleitores o leram? Menos de 30. Não é um bom número.

“Point and click”

E, finalmente, temos aqueles que estão empurrando computadores nas escolas. Nos foi dito que os computadores e seus recursos multimídia tornarão o dever de casa mais fácil e divertido. Estudantes vão, euforicamente, aprender a partir de personagens animados projetados por softwares. Quem precisa de professores quando você pode ter toda a sua educação dirigida por uma IA? Besteira. Esses brinquedos caros dificilmente serão usados nas salas de aula e, se forem, irão precisar de um pesado treinamento dos professores. Claro, crianças adoram videogames, — mas pense na sua própria experiência: você consegue se lembrar de algum filme educacional de décadas atrás? Mas eu aposto que você se lembra de dois ou três professores que marcaram a sua vida.

Ainda temos as empresas online Nos prometeram catálogos instantâneos — apenas navegue com seu mouse por um mar de ofertas. Iremos comprar passagens aéreas via internet, fazer reservas em restaurantes e negociar contratos. Lojas se tornarão obsoletas. Mas então como o shopping perto da minha casa tem mais lucro em uma tarde do que a internet inteira em um mês? E mesmo que tenhamos uma maneira segura para pagar via internet — o que não temos — ainda iremos sentir falta do ingrediente mais essencial de todos: vendedores.

O que está faltanda nesse ilha da fantasia online? Contato humano. Esqueça o burbirinho tecnológico sobnre as comunidades virtuais. Redes e computadores nos isolam. Um bate-papo online é um substituo temporário para um café com os seus amigos. Nenhum tipo de tela interativa chega perto da sensação de um show ao vivo. E quem prefere sexo virtual ao real? Enquanto os os entusiastas da internet acenam com diversos estratagemas para nos seduzir com o mantra de “conhecimento é poder” esse não-lugar tenta nos render ao seu ritmo na Terra. Um substituo pobre. É isso que a internet é. Essa realidade virtual onde temos uma legião de frustrados — em nome da “Educação e Progresso” — acaba com importantes aspectos da interação humana e desvaloriza a experiência que temos aos nos reunir.

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Paulo Pilotti Duarte
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