A história da metralhadora.

Paulo Pilotti Duarte
9 min readJul 21, 2023

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Todo mundo já deve ter se deparado com a famosa imagem — seja uma citação, um pano de protesto, uma bandeira ou uma pixação — do trabalhador que sempre monta uma metralhadora com peças de aspiradores de pó.

Se não viu, veja:

“Sou trabalhador e trabalho numa fábrica de aspiradores. A minha mulher precisa de um aspirador. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-lo, mas não consigo e acaba sempre por se transformar numa metralhadora”
Saiu do Reddit.

Mas de onde vem essa frase? Sobre o que ela trata? Você pode ler como o usuário Thamazolina:

É um trabalhador de chao de fábrica alienado do produto final, envolvido em uma etapa única do processo de produção, que acredita que a fábrica produz aspirador. Quando decide desviar pra casa uma peça de cada começa a perceber que na verdade é uma fábrica de metralhadora com fachada. Partindo disso eu imagino que seja uma metáfora de um peão que gasta seu tempo trabalhando por um ideal que não entende bem, acreditando que o resultado seja pelo bem comum, quando na verdade tá sendo usado pro mal pelo patrao/líder.

Ou pode se questionar como fez o usuário Kapa51:

Quantos de nós pode falar que compra o produto que fabrica com o tempo de trabalho dedicado a fabrica-lo? Nem que seja o dobro de tempo, o triplo, quantos? Eu já recuperei 3 milhões de reais em material perdido numa empresa merda que eu trabalhava, recebi 70 reais de aumento. A gente é alienado do que produzimos, não temos direito ao que fabricamos, a gente faz e não tem retorno. Essa é a verdade.

Você ainda pode traçar uma paralelo, aproveitando o hype do filme do Nolan, Oppenheimer, e pensar sobre a situação caótica e cega dos trabalhadores do projeto Manhatan.

Você pode sair pela área da arte e se lembrar da música do homem de preto sobre um trabalhador que queria um Cadillac mas nunca conseguia ter dinheiro pra comprar um, então ele roubava peças de Cadillac pra montar o seu. O problema é que ele levou anos fazendo isso e quando foi montar, tinha peças de diversos modelos (obsolescência programada?) e só conseguiu monter o “carro do Homer”.

Ou, finalmente, você pode ler a resenha que saiu na Revista LIMITE, que fala sobre a obra Fogo Inextinguível do Harun Farocki, de onde vem essa citação:

Didática de Fogo Inextinguível (Harun Farocki, 1969)

No primeiro plano, um homem aparece em frente à câmera, apoiado em uma mesa, olhando para um papel que pousa entre suas duas mãos. É o próprio Farocki, que começa a ler. Afirma que irá dizer um depoimento realizado pelo vietnamita Thai Bihn Dan, realizado perante o tribunal Vietnã em Estocolmo. Farocki assume a voz de Bihn Dan e expõe o seu relato, que diz querer “denunciar (…) crimes dos imperialistas americanos contra mim e meu vilarejo(…)”. Esta denúncia acontece com Bihn Dan relatando detalhadamente um ataque de napalm feito pelo exército americano. Quando termina de contar o que ocorreu, Farocki levanta a cabeça em olha em direção à câmera. Continua a falar, desta vez sem ler: “Como podemos demonstrar os efeitos do napalm e mostrar os ferimentos por ele provocados? Se lhes mostrarmos uma foto de ferimentos por napalm, vocês fecharão os olhos. Primeiro, fecharão os olhos diante das fotos; depois, fecharão os olhos diante da lembrança; depois, fecharão os olhos diantes dos fatos; depois, fecharão os olhos diante do contexto. Se lhes mostrarmos uma pessoa com ferimentos por napalm, vamos ferir seus sentimentos. Se ferirmos seus sentimentos, vai lhes parecer que os estamos expondo ao napalm, a suas próprias custas. Só podemos dar-lhes uma vaga noção de como o napalm age”. Neste momento, a câmera realiza um travelling in, um tilt down e um pormenor das mãos do realizador é enquadrado, enquanto o vemos abaixando a cabeça, apanhando um cigarro aceso e queimando-o em seu próprio braço. Volta a falar: “Um cigarro queima a uma temperatura de cerca de quatrocentos graus. Napalm queima com um calor de três mil graus. Continuamos a ver o pormenor das mãos, desta vez, contudo, com uma delas com uma mancha preta de queimadura”. A voz continua: “Se os espectadores não quiserem ter nada a ver com os efeitos de napalm, então é importante determinar o que é que eles têm que ver com as razões do uso de napalm”.

Como o espectador que assiste a Harun Farocki queimar o seu próprio braço se relaciona com o uso de napalm contra a aldeia de Thai Bihn Dan? A provocação realizada por Farocki ao espectador, nesta sequência inicial, trata justamente disso: o quanto somos responsáveis pela violência que nos rodeia? Se tratando de um filme feito e veiculado ao longo da Guerra do Vietnã, o que o espectador que estivesse assistindo-o na altura poderia fazer para interferir em algum aspecto o mundo horroroso relatado por Thai Bihn Dan? O que verdadeiramente podemos fazer em relação à crueldade? É com algumas destas indagações que se inicia The Inextinguishable Fire, filme que propõe uma espécie de crise em relação à imagem: seja ela a imagem presente (um homem queimando seu próprio braço), seja a imagem evocada pelo relato lido por este homem (o de um sobrevivente de um ataque realizado por napalm), estabelecendo duas instâncias principais da imagem: uma mais concreta, que diz respeito às imagens do filme; a outra, mais abstrata e indeterminada, diz respeito às imagens que o filme nos sugere. Falemos sobre estes diferentes níveis da imagem.

Um homem fala um discurso e, como para comprová-lo, queima seu próprio braço. É o cúmulo da concretude, justamente por estarmos vendo um corpo (uma matéria) alterar-se a partir de sua relação com um elemento exterior (a brasa): vemos o estado de mudança de uma pele para uma queimadura, que não chega nem a um sexto da temperatura do napalm. Belíssimo momento baziniano da montagem proibida: não há corte algum entre o ato de queimar-se e a mostração da queimadura em si, nem entre o discurso inicial de Farocki e Bihn Dan e a queimadura realizada contra si próprio. O choque passa a ser, definitivamente, o de assistirmos à criação desta queimadura, instância concreta da imagem que só existe depois da instância indeterminada do relato de Thai Bihn Dan nos ser apresentada.

Chamo esta instância da imagem de “indeterminada” pelo simples fato de não ser uma imagem que aparece em movimento no filme, diante de nós, como é a imagem de Farocki queimando seu próprio braço, mas sim a partir do que este corpo que se movimenta profere por sua boca. Harun Farocki começa seu filme colocando em sua própria voz a voz de um homem que sofreu extremamente com a violência. O que este homem sofreu nos é indeterminado, justamente: nunca saberemos o que é sofrer com uma queimadura de napalm, a não ser que soframos de fato com esta queimadura. Ao queimar-se com o cigarro e nos trazer as diferenças entre esta queimadura e a de napalm, Farocki acaba aproximar-mos minimamente do sofrimento de Thai Bihn Dan — mas é apenas uma aproximação: saber o que foi o sofrimento de Thai Bihn Dan é impossível, porque nós não somos Thai Bihn Dan. A queimadura do presente filmado e do passado evocado pelo discurso são mediadas por uma terceira via, a do espectador. É claro que assistir este filme ao longo da Guerra do Vietnã e hoje em dia são duas coisas absolutamente diferentes, mas o impacto causado quando nos damos conta destas duas instâncias da imagem continua sendo gigantesco, justamente por Farocki deixar-nos claro o abismo existente entre os dois tipos diferentes de queimadura (consequentemente, Farocki também deixa-nos claro o abismo entre as duas instâncias da imagem).

Penso no que Michel de Montaigne afirma acerca da tentativa do pintor Timanto (século IV a.C.) de representar os traços de Agamêmnon no momento do sacrifício de sua filha: “Diante da impossibilidade de dar-lhe uma atitude em relação com a intensidade da dor, pintou-o de rosto coberto, como se nenhuma expressão pudesse ilustrar semelhante desespero”. Timanto e Farocki agem de forma parecida, tendo em vista a intransmissibilidade do sofrimento de Thai Bihn Dan e a maneira que Timanto não representa a dor de Agamêmnon: enquanto Timanto pinta Agamêmnon com o rosto coberto, Farocki, por sua vez, utiliza-se apenas daquilo que Thai Bihn Dan pôde falar depois do ocorrido. Qualquer tentativa de representação imagética do acontecimento parece completamente ineficiente e a impossibilidade do retrato da violência é um dos grandes pontos para o realizador não se utilizar de imagens de found-footage, mas da imagem proferida por um discurso. Ao relatar o ocorrido, Farocki confronta o espectador a imaginar o que ocorreu com este homem, sob a violência de um fogo que não se apaga.

É importante, no entanto, deixar marcado em tela, na concretude da imagem, os efeitos de uma chama de napalm, para aí depois mostrar-nos o que há por trás do processo industrial responsável pela sua feitura. Assim, no segundo plano do filme, vemos um cadáver de rato desmanchando-se pelas chamas do napalm, enquanto uma voz em off passa a dar detalhes das características da ação do napalm. Aprendemos, por exemplo, que o napalm-B é praticamente impossível de ser retirado do corpo e continua queimando mesmo quando entra em contato com a água, informações que deixam a imagem ainda mais abjeta. Mais uma vez, Farocki utiliza-se da tensão entre as duas instâncias da imagem para, desta maneira, relacioná-las e intensificar o seu efeito imediato: nunca vemos atos propriamente ditos de violência ao ser humano derivada do uso de napalm, mas vemos como este produto atinge outros seres, cabendo a nós, espectadores, a associação do quão maligno é este produto.

Em outra sequência, Farocki apresentará satiricamente uma reencenação da dinâmica de funcionamento de uma fábrica da Dow Chemical, uma das maiores produtoras de napalm para o governo dos Estados Unidos, em que alguns cientistas se reúnem para assistirem ao poder do napalm em imagens de found-footage passam na televisão. Uma das cientistas questiona-se: “temos de assistir isto?” Depois, outra cientista apoia sua cabeça no ombro de um colega e afirma: “querido, tenho muito frio.” Aqui, Farocki humaniza os responsáveis pelo napalm, pois eles também sentem frio e, consequentemente, podem se queimar: contudo, não se questionam acerca do produto que realizam e a violência decorrente da fabricação do napalm. Farocki, então, nos diz: “Por causa da divisão intensificada do trabalho, muitos cientistas e peritos já não reconhecem a sua contribuição criminosa na destruição. Perante os crimes no Vietnã sentem-se como observadores.”

A sequência final do filme é tão marcante quanto a inicial e dá continuidade a abordagem didática presente em todo este filme. Vemos uma mesma configuração cênica repetindo-se três vezes, porém, com pequenas variações. Trata-se de outra breve encenação. Os enquadramentos são os mesmos, o ator também. O que muda é seu vestuário, seu discurso e o que ele produz. No primeiro momento, vemos este homem retirando uma peça de dentro do lugar onde ficam os papéis para secar-se. Então, vira para a câmera e fala: “Sou trabalhador e trabalho numa fábrica de aspiradores. A minha mulher precisa de um aspirador. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-lo, mas não consigo e acaba sempre por se transformar numa pistola-metralhadora”. A cena, então repete-se: “Sou estudante e neste momento trabalho numa fábrica de aspiradores. Mas acho que a fábrica produz pistolas-metralhadoras para Portugal. Mas nós precisamos mesmo é de uma prova. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-la, mas não consigo, e acaba sempre por se transformar em um aspirador”. A terceira e última vez que a cena se repete: “Sou engenheiro e trabalho numa empresa de eletrodomésticos. Os trabalhadores pensam que produzimos aspiradores. Os estudantes pensam que produzimos metralhadoras. Este aspirador pode tornar-se numa arma útil. Esta metralhadora pode tornar-se num eletrodoméstico. O que produzimos depende dos trabalhadores, estudantes e engenheiros”.

A frontalidade inicial do filme repete-se aqui, desta vez com um ator fazendo três papéis diferentes: um trabalhador, um estudante e um engenheiro. Cada um destes papéis representa uma fase do processo fabril de produção. Uma fábrica pode produzir o que bem entender, sejam armas químicas ou aspiradores de pó. Sem os trabalhadores, os estudantes e os engenheiros, nada seria produzido, nem um aspirador de pó, nem uma pistola metralhadora, nem uma arma química. Os responsáveis pelo horror não podem colocar-se distanciados do horror em si, o produto não pode ser dissociado das mãos que o produzem — e, principalmente, de quem manda estas mãos o produzirem. Não há como nos colocarmos distantes dos processos responsáveis pela criação de queimaduras, de mortes, de violência. A responsabilidade pelos atos deve ser exposta: fazemos parte deles.

Paulo Martins Filho

[1] MONTAIGNE, Michel de, 1533–1592, Ensaios, edição integral, tradução de Sérgio Milliet — São Paulo: Editora 34, 2016 (1ªedição), pág. 48

Seja qual for a sua visão e interpretação sobre o tema, a verdade é que ele é sobre o trabalhador, a opressão do capital e como todo o sistema é uma “força” que destói aos trabalhadores.

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